quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Brain Damage




Os passos pesados daquele sapato molhado, já estragado e ainda assim utilizado, lavavam a alma de Erick. O clima ainda úmido, mesclado com o aroma de sangue traziam-no para um cenário o qual havia pisado inúmeras vezes. Ainda assim, sempre parecia a primeira vez.

- Cigarro? - perguntou o capitão Euclides, responsável da noite pela ronda no bairro.
- Eu trouxe, obrigado. - respondeu o investigador.

Vestia uma camisa preta meio larga pelo tempo e pelos esticões que fazia para não precisar passar a blusa, com uma calça jeans velha, com as pontas todas desfiadas por preguiça de ir à uma costureira e ajeitar isso. Do bolso, sacou seu isqueiro Bic e o velho Lucky Strike, o qual fumava desde os 15 anos, antes influenciado por seu pai, posteriormente pela série Mad Men. Era uma espécie de ritual. "Falta meu copo de whisky barato", pensou consigo mesmo. 

Adentrou o quarto onde alguns agentes do IML já realizavam o reconhecimento da cena, quando o observaram dois acenaram com a cabeça, e o terceiro sequer fez questão. Walter o odiava.

- Chegaram faz uns 15 minutos, mas ta tranqüilo, já falei pra eles que tu vinha aqui... 

O capitão com passos pesados entrou logo em seguida, deixou o resto dos militares do lado de fora para evitar maiores curiosos, como de costume na vizinhança onde era comum isso, ou nem tanto dessa natureza de atrocidade...

Na cama, uma criança com cerca de doze anos encontrava-se dilacerada e violentada. Já era o terceiro caso em um mês com "Lolitas" sendo caçadas pelo tal "Humbert", ou "Humberto" como chamava a população geral. 

Nenhuma ligação em comum com os ataques até então, além de vítimas jovens e promíscuas a julgar pelo quarto desta. Simples e com as paredes caindo aos pedaços, a pintura descascada em diversos pontos espalhados simbolizavam a presença constante de pôsteres sendo colocados e retirados constantemente. Bijuterias espalhadas com maquiagem pelo chão, junto à um catálogo sujo de sangue da Natura estavam no criado-mudo. O celular com capa rosa caído no chão marcava uma música de aparelhagem, a qual deveria ter acabado horas antes de chegarem.

Pela expressão neutra de Erick, logo o policial desesperado adiantou-se a questionar algo, como sempre fazia, como sempre inutilmente:

- E então cara? Nada mesmo? Eu ainda preciso de algo sabe...não imediato, mas o delegado ta querendo saber de algo...
- Pois é guerreiro, mas tá difícil achar algo sabe? Tu deixa pra me chamar só da segunda vez e eu não tive muito tempo pra tudo isso.
- Eu te liguei cara! Só que o Barbosa não me deu teu outro número, porra!
- Pois é. Calma (Eu sei que não devia estar pedindo isso), já liguei pra uns caras...e em breve vou saber de algo sim.

Visivelmente puto, o policial concordou com a cabeça entortando a boca. Apesar de tudo, o investigador já havia ajudado-o inúmeras vezes, inclusive salvando sua vida com uma informação.
Erick mergulhou na cena. Ficou parado imóvel no pé da cama um bom tempo, tanto que nem percebeu quando os agentes já haviam se retirado, e somente um policial aguardava ele sair pra tirar e remover o corpo. O sangue espalhado e os cortes na barriga e nas pernas sinalizavam cortes a sangue frio feitos calma e meticulosamente. De algum modo a vítima não reagiu à isso, se estava drogada só o teste revelaria, mas nos casos anteriores nada indicava isso, a não ser que os resultados estivessem alterados.

O rosto dela transmitia claramente uma sensação de tranqüilidade, o que tornava tudo mais sádico...e bem feito. Da metade do corpo pra cima ela parecia somente dormir como outro dia de farra. Pra baixo, os órgãos espalhados. O cheiro do sangue, de morte, já fazia parte dele.

Retirando-se do local, a chuva de algumas horas atrás mesclava com o odor interno da casa de madeira, localizada no bairro de Icoaraci. Vizinhos amontoavam-se para ver o que era, murmúrios de fofoca e horror eram claros. Alguns riam. Os pais viajaram pra Mosqueiro apenas pra serem condenados com a notícia e os acontecimentos na volta.

O investigador entrou no carro, um Voyage modelo antigo bem restaurado e preservado, saiu com dificuldades do local. Acendendo outro cigarro ele tomou outro caminho, para visitar alguém de antigamente. 

Entrando como de costume no conjunto de prédios a essa hora da madrugada, o porteiro sequer deu atenção, só acenou rapidamente e voltou a roncar. Várias idéias e possibilidades atingiam sua mente. Um maluco psicopata graças à um trauma de infância? Problemas familiares? Abusado pelo professor ou quem sabe até pelo irmão? Qual era a seqüência de fatores que o levara a cometer crimes tão similares em locais distintos, ou melhor: Qual seu próximo passo? 

Erick pensava melhor quando bebia, ou ao menos achava isso, e com uma boa companhia e conversa, era o que procurava.

Ao chegar no terceiro andar do apartamento, ouviu um barulho no corredor, deveria ser da velha que sempre caça os gatos de madrugada, maldita insônia associada a solidão...mas não. Um homem desajeitado com a chave em uma mão e um saco da McDonalds na outra tentava abrir a fechadura, aquela que ele bateria alguns segundos depois caso não visse essa cena...aquela porta de madeira velha mas pintada recentemente de verde.

Quando a porta abriu-se, o homem viu o investigador no pé da escada. Por alguns segundos ficaram se olhando como se fosse uma eternidade. O homem reconheceu Erick e não o contrário, parecia visivelmente conturbado com isso. Uma voz feminina e distante ecoou de dentro do local:

- Até que enfim né! Já ia te ligar...o que foi?

Antes que pudesse revelar-se no corredor, ele desceu as escadas, em direção à seu Voyage, em direção à rua, para dirigir por aí...
Ele acelerou, queimando alguns sinais, desviando de alguns carros inoportunos pela noite, vendo uma festa na avenida onde os bêbados pensam que a rua é sua calçada, quis atropelar um, mas estava esperando.
Até que o som de Brain Damage ecoou pelo carro.

- Alô?
- ... Tudo bem?
- Claro, o que houve? - tinha acabado de tirar "fino" de um táxi na beira de uma casa de festas.
- Nada...não sei, passastes aqui?
- Sim, mas foi rápido, queria uma idéia.
- Posso te ligar amanhã...vai fazer algo? - Ela sabia a resposta, ele sempre estava fazendo algo, não importante necessariamente, mas sempre ia lá.
- Pois é, eu vou te avisar, to numa cagada sabe? Os caras nem se dão ao trabalho de... - Ia fazendo a curva entre uma das ruas da Independência quando ouviu um grito forte e agudo na noite. Quando viu uma garota sendo puxada e socada no estômago num beco.
- Te ligo depois.
- O que foi isso?! ? Tá tudo bem a... - Erick desligou imediatamente e parou o carro um pouco depois do beco. Pegou uma arma e acoplou o silenciador rapidamente. 

A noite estava fria e úmida, um vento fraco soprava pela avenida e precisou espreitar pela escuridão, ainda ouvindo sussurros e um baque na parede de concreto ao seu lado. Quando esgueirou para ver o que acontecia, um dos homens já estava abusando da garota, de pele escura e cabelo ruim, mas com o corpo das garotinhas da atualidade. O outro tentava empurrar em sua boca com a arma apontada para a cabeça. 

Por alguns segundos ele parou, e pareceu compreender algo. "Era por isso, claro, mas não desse jeito que aconteceu com aquela, então por quê?". E então lembrou-se da cena do apartamento momentos antes. E então surgiu para os estupradores. 

O que estava com a arma assustou-se e acabou deixando ela cair no chão, antes que pudesse gritar, levou um tiro na garganta. Seu corpo foi projetado para trás e caiu com um braço solto e o pau na mão, literalmente. A garota gritou novamente ecoando pela noite, quando o garoto (sim, aqueles retardados adolescentes metidos à valentões) viu o investigador, se cagou todo. Levantando os braços como rendição e um misto de valentia tentando pegar a arma do parceiro que caiu, já tinha levado cinco socos no rosto, fazendo-o engolir alguns dentes, derrubando-o. 

A garota estava com o rosto sujo de sangue, possivelmente de uma pancada na cabeça, mas ela não parava de gritar. Incrível como essas sabem fazer um escândalo na hora da confusão, mesmo atordoadas...

O outro garoto ainda, cuspindo sangue, tentou pular rapidamente na .38 do seu colega. Erick atirou em sua mão, fazendo ele proferir um misto de gargarejo e grito de dor. Ele olhou pro investigador ensaiando um "Perdão! Não me mata não!". 

Com as memórias em outra cena, Erick descarregou a arma no seu rosto. 

A garota apavorada gritava e chorava ainda mais, aliviada e horrorizada com a cena. As sirenes distantes aproximavam-se do alarde no local, algum morador deve ter chamado a polícia com os gritos...

Ele sentou no canto onde estava, pôs a mão no bolso e tirou outro cigarro. Agora ele estava encrencado.

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